O diretor de Corra!, Jordan Peele, novamente provoca o espectador com a suposição de um mal oculto cuja existência desconhecemos. No filme anterior, era um experimento criado por racistas. Em Nós, é a ideia de que todos temos um duplo que habita o subterrâneo escondido da civilização.
A esses duplos só lhes sobra a desgraça. Eles não contam com as condições que temos, quanto a conforto, comida, diversão, alegria, amor. São as nossas sombras, nossas versões do mal.
Em 1986, aconteceu o evento chamado Hands Across America (“mãos através da América”). 6.500.000 pessoas deram as mãos ligando a costa leste e a costa oeste dos EUA. Era uma ação para combater a fome, a falta de moradia e a pobreza. O filme não afirma, mas entendemos que esse extraordinário acontecimento abalou o equilíbrio da Terra e abriu uma porta entre esse mundo das sombras e o mundo normal.
É aí, nesse momento, que a menina Adelaide ficou cara a cara com sua sombra em um labirinto de espelhos. O encontro a deixou traumatizada e sem fala por meses.
Adulta, casada e com dois filhos, Adelaide volta pela primeira vez à praia de Santa Cruz, local onde aconteceu esse encontro. O retorno permite que as sombras de todos subam à superfície para agora recriar a corrente humana, desta vez uma corrente do mal.
Versículo Jeremias 11:11
O roteiro, também de Jordan Peele, insiste bastante no versículo bíblico Jeremias 11:11, que diz: “Por isso, assim diz o Senhor: ‘Trarei sobre eles uma desgraça da qual não poderão escapar. Ainda que venham a clamar a mim, eu não os ouvirei.’”. A referência traduz o objetivo das sombras, que é subir à superfície e destruir seus pares.
Então, no filme, os números 11:11 aparecem em várias cenas. Por exemplo, o presente que a menina Adelaide escolhe é o de número 11, há um mendigo com uma placa que mostra explicitamente “Jeremias 11:11”, o despertador digital no quarto da filha de Adelaide mostra que são 11:11 da noite, etc. Até mais sutilmente, como nas sombras dos quatro membros da família de Adelaide, quando eles andam na areia da praia de Santa Cruz. Além de indicarem a presença de sombras, elas formam o número 11:11.
Apesar dessa insistência em destacar essa referência bíblica, ela não é tão essencial para a trama. Afinal, revela que há o desejo de trazer desgraça, mas o filme não possui nenhuma relação com religiosidade. E isso fica evidente quando há a revelação final de um segredo, confirmando que não é um fenômeno sobre deus e diabo.
O segredo é surpreendente e traz ao público aquela sensação de que ele devia ter sacado isso antes. Afinal, o espectador percebe que a sombra de Adelaide é a única que consegue falar, apesar de que com muita dificuldade. As demais sombras são mais animalescas.
Terror diferenciado
Jordan Peele, como em Corra!, não busca o terror. Há violência nos filmes, mas não há sustos nem criaturas horripilantes ou aparições sobrenaturais vindas do inferno. Em Nós, o que assusta é a versão descontrolada dos protagonistas. As sombras são como criaturas impulsivas e agressivas. Aliás, lembrando até aquela sequência do homem primata em The Square: A Arte da Discórdia, que também contava com Elisabeth Moss no elenco.
Para conseguir assustar com isso, Peele conta com uma máscara branca – simbolicamente oposta àquela de um símio que o menino normal costuma usar e com uma deformação por queimadura desse garoto em forma de sombra. Mas, basicamente, o terror vem da interpretação dos atores, principalmente pelo modo como movimentam o corpo, de uma forma não civilizada. Isso porque já nos habituamos com a forma como as pessoas se movimentam, e podemos até antecipar o que elas farão. Essa harmonia de movimentos não existe nas versões sombra e o terror vem da brutalidade que enxergamos em seus trejeitos.
Além disso, Jordan Peele repete em Nós muitas características do seu filme de estreia, Corra!. Dessa forma, deixa pistas para um cinema autoral que está desenvolvendo. São obras de terror sem sustos nem cenas horripilantes, que criam suspense com a atmosfera, sobre algum mal que pode existir e desconhecemos.
Spoilers adiante! Explicações finais
Enfim, Nós é um daqueles filmes que engrandece com o final, porque conclui de uma forma que consegue surpreender e se manter coerente com a estória que assistimos até então. Entendemos, finalmente, que a sombra de Adelaide é a única que consegue falar, porque ela é a própria Adelaide. Quando pequena, a sombra conseguiu tomar seu lugar e jogá-la para o mundo subterrâneo. Portanto, é esse o motivo que a Adelaide menina, após o evento no parque de diversões, não conseguia falar – ela era a sombra, que depois aprendeu a se comunicar.
Da mesma forma, essa troca explica também como Adelaide se tornou a líder desse movimento das sombras para recriar o evento da corrente pelos EUA.
Por fim, a Adelaide sombra, adulta, não sem lembrava de nada, mas, receava inconscientemente retornar a Santa Cruz. Afinal, ela poderia perder o privilégio de viver na superfície.
Ficha técnica:
Nós (Us, 2019) EUA. 116 min. Dir/Rot: Jordan Peele. Elenco: Lupita Nyong´o, Elisabeth Moss, Winston Duke, Anna Diop, Kara Hayward, Tim Heidecker, Cali Sheldon, Shahadi Wright Joseph, Yahya Abdul-Mateen II.
Universal Pictures