Leia aqui a crítica de Sérgio Alpendre sobre o filme Os Amores Dela (Les Amours d’Anaïs, 2021), que estreou em 21 de julho nos cinemas.
O cinema francês contemporâneo é dominado pelos filmes do meio: orçamento médio, ambições estéticas modestas, comunicabilidade e uma sensação de sofisticação. São filmes geralmente voltados para pessoas do chamado gosto médio, que não toleram algumas vanguardices de Godard, por exemplo, assim como não se interessam em acompanhar a carreira de um Philippe Grandrieux (a não ser mais recentemente, quando ele enfraqueceu e conseguiu chegar ao público dos filmes do meio), ou mesmo um Eugène Green, com seu anti-naturalismo. O suprassumo do gosto médio seria algo como Woody Allen ou Pedro Almodóvar, ou ainda Nicole Garcia e Olivier Assayas no século 21, para pensarmos no cinema francês.
Esse cinema que não inventa a roda nem provoca, eventualmente, pode ser belo, como, por exemplo, o melodrama Os Olhos Amarelos dos Crocodilos (Les yeux jaunes des crocodiles, 2014), de Cécile Telerman. Porém, é raro. A maior parte dessa produção fica numa faixa de apreciação entre a leve frustração e o pequeno entusiasmo. Como os franceses são mestres nisso, temos uma série de filmes do meio que são geralmente agradáveis de ver, eventualmente pobres de estilo e muito raramente recompensantes.
Os Amores Dela
Primeiro longa-metragem de Charline Bourgeois-Tacquet, Os Amores Dela, sem ser verdadeiramente forte, pode ser considerado acima da média desse universo. Tem a limitação típica dos filmes do meio, e por isso não alcança maiores alturas, mas revela um olhar muito atento a nuances, principalmente com o trio principal do elenco.
O filme acompanha as aventuras amorosas de Anaïs (Anaïs Demoustier), bem no estilo francês das inconstâncias e inconsequências, da idade da perdição emocional (os terríveis 30 anos). Tem um pé no academicismo e o outro na possibilidade de ultrapassá-lo com uma atenção pouco usual aos detalhes.
Anaïs não quer ter filhos, mas seu namorado quer. Ela conhece um homem bem mais velho, Daniel (Denis Podalydès), mas não o deixa dormir em seu apartamento, pois fica incomodada quando dorme com outras pessoas. Vai visitar os pais na casa de praia e descobre que a mãe tem câncer, com metástase no fígado. Num mundo prestes a ruir, Anaïs se agarra ao prazer, como também procura um amor acachapante.
Daniel tem um romance de 12 anos com a famosa escritora Emilie (Valeria Bruni Tedeschi). Anais passa a se aproximar dessa escritora, inicialmente como forma de encontrar o segredo para conquistar Daniel. Depois, as coisas mudam, como costuma acontecer nos meandros dos corações (e nos filmes franceses, do meio ou não). Está estabelecido o triângulo mais ou menos amoroso. Três estrelas (Demoustier, Tedeschi e Podalydès) brilhando forte e garantindo uma qualidade decente.
O brilho de Anaïs
O grande mérito da diretora é permitir que sua atriz principal brilhe como nunca antes havia brilhado. De fato, Anaïs Demoustier nunca esteve tão bem como neste filme. Sua personagem é viva, vacilante, tateante e ao mesmo tempo decidida, uma intelectual que não parece fazer questão de ser intelectual. Ela recebe turistas em seu apartamento, que aluga por temporada, como o rapaz de Amanda (2018), de Mikhaël Hers, aliás, um dos melhores filmes do meio dos últimos anos.
Em determinado momento, ainda no primeiro terço de filme, ela recebe um casal de japoneses que aluga temporariamente seu apartamento e começa a falar inglês com eles, para ser compreendida. Depois de um tempo, fica agitada e começa a se comunicar em francês, não reparando que seus inquilinos não estavam entendendo nada. Sua atuação é tão impressionante que não parece ser uma atriz, parece que sua personagem viveu assim a vida toda.
Como em quase todos os filmes desse tipo, há um momento em que os protagonistas dançam. É o momento de poesia a priori (como dizia acertadamente Truffaut). Costuma encantar plateias de gosto médio. Emilie dança ao som de “Betty Davis Eyes”, hit oitentista de Kim Carnes. É observada por Anaïs, que segura uma garrafa de cerveja pequena. Ao aceno de Emilie, Anaïs vai dançar com ela. Parece obrigatório colocar uma cena assim no cinema francês contemporâneo. Eis um tipo de limitação dos filmes do meio: a uniformidade.
Os Amores Dela, ainda assim, é uma boa evolução com relação ao curta de estreia de Bourgeois-Tacquet. Pauline Asservie (2018) também é protagonizado por Demoustier, mas ali ela se perdia na verborragia e na tolice de se desesperar pela falta de uma mensagem de seu amante. No papel que leva seu prenome, Anaïs Demoustier mostra que é uma ótima atriz.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Os Amores Dela | Les amours d’Anaïs | 2021 | França | 1h38 | Direção e roteiro: Charline Bourgeois-Tacquet | Elenco: Anaïs Demoustier, Valeria Bruni Tedeschi, Denis Podalydès, Jean-Charles Clichet, Xavier Guelfi, Christophe Montenez, Anne Canovas.
Distribuição: Imovision.