Showing Up mostra o temido encontro de Kelly Reichardt com a produtora A24, que já havia distribuído First Cow (2019), longa anterior da diretora. Essa produtora e distribuidora de Manhattan costuma atrair fãs apaixonados e detratores na mesma medida. Uns como outros estão errados em princípio, porque a produtora não tem a cara tão definida quanto imaginam, mas é meio evidente que o catálogo de distribuição da empresa é muito superior ao que ela mesma produz. Está em perfeito compasso com a produção cinematográfica contemporânea, convenhamos, deixando detratores em relação provocativa com os fãs, como se buscassem uma compensação.
Pulado o assunto A24, podemos nos concentrar em Showing Up, seu oitavo longa. Reichardt esteve algumas vezes perto de fazer um grande filme, notadamente com First Cow, por coincidência. Faltava, talvez, libertar-se de algumas amarras da contemporaneidade para se tornar realmente inventiva, uma loba solitária dentro de um cinema bem (cada vez mais?) uniformizado.
Com este novo longa, a impressão é de um passo para trás, um retorno em direção a essa uniformidade. Mesmo assim, algumas partes se destacam, como os travellings e as panorâmicas que a cineasta usa de maneira bem interessante: os skatistas nos levando até a protagonista, por exemplo, ou as pessoas tecendo tapetes em um salão, ambos os momentos dentro dos primeiros vinte minutos. Ou os momentos em que a protagonista faz arte, que sugerem uma tentativa de aproximação temporal com A Bela Intrigante (1994), de Jacques Rivette, grande filme sobre inspiração artística. Ou ainda o voo do pombo dentro da galeria.
Michelle Williams é Lizzy, escultora prestes e estrear uma importante exibição, embora o trabalho e um gatinho de estimação chamado Ricky insistam em atrapalhar sua concentração. Ela perambula meio assustada, com meias e chinelos de idosa e uma expressão meio anêmica no rosto. Ricky fere um pombo que entra na casa por acidente. Lizzy o liberta, mas a vizinha Jo (Hong Chau), que é também a proprietária do apartamento onde mora, o encontra e pede que Lizzy fique com ele durante o dia, como um grande favor. Seu dia de folga no trabalho era para esculpir, mas ela passa a ser babá de pombo ferido, e assim o será por boa parte do filme.
No tom, não há muita diferença entre Showing Up e Uma Bela Manhã (2022), de Mia Hansen-Løve. Os personagens de Reichardt são mais curiosos e diversos, o que lhe dá uma vantagem. Além disso, ela sabe trabalhar com um tipo de humor marcado pela discrição e pelo inusitado, como o companheiro de trabalho que zomba de Lizzy por ela ter levado o pombo numa veterinária. Finalmente, Mia Hansen-Løve tem uma direção meio apagada, que parece se esconder de qualquer ideia de estilo, enquanto Reichardt parece estilosa mesmo quando procura deixar o estilo em segundo plano.
Em alguns momentos, as expressões faciais de Michelle Williams lembram as de Vladimir Brichta em Capitu e o Capítulo (2021), depois que ele observa certa semelhança entre o seu filho e Escobar. O mais interessante é que tanto Bressane quanto Reichardt parecem procurar o mesmo efeito. É como se o mundo tivesse se tornado parte de uma dimensão fantasmagórica, no qual a normalidade é rara e seus personagens reagem a esse mundo com um misto de desespero e estupefação.
Dentro desse mundo retratado por Reichardt, é bem curioso o momento da exposição, quando duas crianças presentes tiram a faixa colocada para curar a asa do pombo e ele consegue voar, metaforizando a necessidade de liberdade artística. Ele se assusta, obviamente, com as paredes e tetos da pequena galeria, até que finalmente Sean (John Magaro), o personagem mais desajustado do filme, o apanha com muito cuidado e o liberta. Um bichinho acuado reconhece o outro.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Showing Up | 2022 | 107 min | EUA | Direção: Kelly Reichardt | Roteiro: Kelly Reichardt, Jonathan Raymond | Elenco: Michelle Williams, Hong Chau, John Magaro, André Benjamin, Judd Hirsch, Matt Malloy, Amanda Plummer, Theo Kaplitz, André 3000, Todd-o-Phonic Todd, Lauren Lakis.