Essencialmente, Sibéria tem mais a cara do Willem Dafoe do que do Abel Ferrara.
Afinal, a longa filmografia do diretor Abel Ferrara traz à mente o retrato da violência urbana explícita que ele se especializou em mostrar. E aqui em Sibéria, ele arrisca algo diferente.
A diferença começa pelo cenário. Nesse sentido, ao invés da cidade, o palco da estória do filme é a isolada vastidão gélida siberiana. Nesse local, vive o protagonista, Clint (Willem Dafoe), dono de um bar pouco frequentado. Aqui, ele espera encontrar sua paz de espírito.
Tal como sugere sua narração durante os créditos iniciais, suas lembranças felizes da infância aconteceram em um cenário similar. E ele deseja reviver essa sensação, quando conseguia uma rara convivência agradável com o seu pai. Porém, outras memórias do passado o atormentam em forma de alucinações assustadoras.
Dessa forma, Sibéria convida o espectador a sentir o mesmo que Clint. No lugar de apresentar informações devidamente explicadas sobre os fatos que marcaram a vida dele, o filme as ilustra com cenas que procuram traduzir as sensações dos personagens.
Por isso, não espere entender exatamente o que aflige Clint, e sim compartilhar suas emoções. Isso justifica as cenas impactantes, quase dentro do gênero terror, muitas vezes acompanhadas de um furioso thrash metal.
Festival de imagens oníricas
Enfim, desse festival de imagens oníricas, pode-se depreender o relacionamento conflituoso de Clint com o pai, um possível erro quando ele exercia a profissão de médico, uma passagem pela Guerra do Vietnã, a separação da mulher, entre outras interpretações. Nota-se, também, que Clint procura várias crenças em busca de sua paz, e acaba encontrando-a na cena final, quando percebe que ele, como o peixe, não pode ser usado como objeto de sacrifício.
Sob outro aspecto, Sibéria apresenta imagens exuberantes, criadas pelo diretor de fotografia Stefano Falivene. Os enquadramentos utilizam a paisagem isolada coberta de neve para contribuir na construção do personagem principal. E as cenas noturnas possuem uma função especial de conquistar a plena atenção do espectador, antes de ele ser surpreendido com uma cena explosiva de violência.
Considerando que o diretor Abel Ferrara começou sua carreira com filmes pornôs e com um longa sobre uma jovem matando homens a rodo – em Sedução e Vingança (1981) – surpreende a sua escolha por contar uma estória de forma tão enigmática em Sibéria. Ele, assim, deliberadamente assume o risco de descontentar seus fãs.
Por fim, a presença do ator Willem Dafoe, que já foi dirigido por Abel Ferrara em 4:44 – O Fim do Mundo (2011), evoca referências a filmes similares a Sibéria, quanto a sua exposição obscura. Por exemplo, Anticristo (2009) e O Farol (2019), estão mais próximos deste novo filme de Abel Ferrara do que qualquer outro título da filmografia do diretor.
Obs: assistimos a esse filme na cabine de imprensa da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Ficha técnica:
Sibéria | Siberia | 2020 | Itália/Alemanha/México | 92 min | Dir: Abel Ferrara. Rot: Abel Ferrara, Christ Zois. Elenco: Willem Dafoe, Dounia Sichov, Simon McBurney, Cristina Chiriac, Daniel Giménez Cacho, Fabio Pagano, Anna Ferrara, Phil Neilson, Laurent Arnatsiaq, Valentina Rozumenko, Trish Osmond, Stella Pecollo.
Trailer original:
Assista também à entrevista que Abel Ferrara concedeu à 44ª Mostra.