Em seu último longa, The Caine Mutiny Court Martial, William Friedkin retoma uma história que já havia sido filmada por Edward Dmytryk (A Nave da Revolta, 1954), e rodada para a TV por Robert Altman (A Nave da Revolta, 1988) e por um monte de diretores menos tarimbados.
The Caine Mutiny foi um livro escrito por Herman Wouk e publicado em 1951. Logo depois, o próprio Wouk pegou a parte do julgamento na corte marcial e a adaptou para uma peça, The Caine Mutiny Court Martial, encenada pela primeira vez em 1953. Tanto a versão de Altman como a de Friedkin são adaptações da peça, enquanto a de Dmytryk é uma adaptação do livro.
Portanto, o longa de Friedkin se concentra igualmente no julgamento do motim do Tenente Maryk, que tirou o poder do Capitão Queeg e o prendeu, com o auxílio dos demais oficiais a bordo, sob a alegação de que esse capitão não tinha mais condições mentais de comandar o navio em situação de terrível estresse causado por um ciclone.
Kiefer Sutherland interpreta o Capitão Queeg como um homem visivelmente perturbado, com o rosto torto, a fala meio presa, tiques nas mãos e um olhar meio perdido, não exatamente um maníaco, mas a um passo de se tornar um, aparentemente. Conforme o advogado de defesa o pressiona, ele vai se revelando mais e mais perturbado, num nível que provoca pena nos demais participantes do julgamento, incluindo a corte.
Teatro filmado
Antes de prosseguir comentando o elenco, é interessante entrar na discussão sobre teatro filmado, a meu ver, um assunto ainda espinhoso e causador de alguns equívocos. Cada versão da peça, seja para cinema, seja para TV (que frequentemente, quando dirigida por um autor, demonstra uma preocupação cinematográfica maior que a de muitos filmes) tem suas particularidades, que dizem respeito à escolha do elenco e das locações, ao tom das interpretações, às distâncias entre os atores e atrizes e a câmera, ao tempo de cada plano, enfim, a inúmeras escolhas que fazem com que cada adaptação de um mesmo texto divirja da outra obrigatoriamente. É por isso que, adaptando a mesma peça, Altman em 1988 e Friedkin em 2023 tenham chegado a resultados tão diferentes.
Falar em teatro filmado de modo pejorativo é ignorar que cinema é feito com uma câmera, o que implica em um recorte do espaço cênico e uma maior responsabilidade com os limites da tela, e é feito também da divisão das cenas entre planos e de uma posterior montagem. Esses elementos vão fazer a diferença, qualquer que seja a qualidade da peça filmada.
Elenco
Talvez o telefilme de Altman seja ligeiramente superior, pois conta com um elenco mais forte – Eric Bogosian como o advogado de defesa, Jeff Daniels como Maryk, Brad Davis como Queeg e Peter Gallagher como o promotor – e, principalmente, com uma câmera mais inquieta e inventiva. Se o teatro é filmado, a câmera tem de fazer a diferença, certo?
Mas a versão de Friedkin é bem digna, a começar pela decisão de atualizar a história. Em vez de eventos traumáticos da Segunda Guerra Mundial e do pós-guerra, temos o 11 de setembro de 2001 e a Guerra do Iraque num passado recente dos personagens. E o filme ainda conta com um elenco que, se não está no mesmo nível do de Altman, tem seus evidentes trunfos. A começar por Sutherland, que nos mostra ao mesmo tempo como o Capitão Queeg pode ser entendido como um despreparado e também como um oficial sob intenso fogo cruzado por advogados de palavras duras e inquisidoras.
Dois dos três maiores trunfos do elenco de Friedkin, contudo, respondem pelo que tem de novidade. Comecemos pelo que não é novidade, pois trata-se de um homem branco, como todos no julgamento do filme de Altman. Jason Clarke está sublime como o advogado de defesa que não está convencido de estar fazendo a coisa certa. No final, ele terá seu momento de glória, não exatamente na corte.
Representatividade
Os outros dois grandes trunfos mostram a novidade pela questão da representatividade. O clube do Bolinha foi desmanchado e temos, além de mulheres na corte, uma promotora, vivida por uma excelente Monica Raymund, tanto quando é enérgica quanto nos momentos em que titubeia.
O juiz, por sua vez, é interpretado por um ator negro, o sublime e precocemente falecido Lance Reddick (o fleumático recepcionista do Continental, na série John Wick), que interpreta seu papel com uma altivez impressionante, ao ponto de não imaginarmos mais outro ator no papel. No longa de Altman, vemos um ator negro só no final, como garçom da festa, balançando negativamente a cabeça em protesto silencioso à fala um tanto preconceituosa do escritor.
O elenco afiado e muito bem escolhido, os tempos das falas respeitados pela montagem e pela câmera, assim como as necessárias reações a essas falas, além de um acerto quanto ao cenário, mais formal e sofisticado que o de Altman, fazem desta recente versão de The Caine Mutiny Court Martial um belo réquiem para Friedkin e Reddick.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
The Caine Mutiny Court-Martial | 2023 | 108 min | EUA | Direção e roteiro: William Friedkin | Elenco: Kiefer Sutherland, Jason Clarke, Jake Lacy, Monica Raymund, Lewis Pullman, Jay Duplass, Tom Riley, Lance Reddick, Elizabeth Anweis.