Cría Cuervos: marcas de um passado triste.
Através de uma narrativa original, Carlos Saura retrata a infância como o período em que a Espanha esteve sob a ditadura franquista. O filme foi lançado em 1976, quando o regime democrático voltava ao poder.
Ana relembra a sua infância como uma fase triste em sua vida. Afinal, sua afetuosa mãe morreu cedo, após sofrer com o marido, um militar ausente que a traía. Depois, Ana ainda criança viu o pai morrer na cama com a mulher de um amigo dele. Em seguida, ela e as duas irmãs ficaram sob guarda da sua tia Paulina, uma mulher dissimulada que não estava disposta a cuidar das crianças.
Geraldine Chaplin interpreta Ana quando adulta. Ela aparece no filme contando suas impressões sobre sua infância diretamente para a câmera. A mesma atriz, que é filha de Charles Chaplin, faz o papel da mãe de Ana nas lembranças e imaginações dela. Já a Ana menina é interpretada por Ana Torrent, que é a principal protagonista de Cría Cuervos.
Retrato da infância ou metáfora política
O filme pode ser assistido como um relato das percepções de Ana sobre essa infância em que a inocência foi ceifada. Nesse sentido, Ana vê o pai e a tia como pessoas más de quem sentia ódio. Tanto que, na imaginação dela, ela os teria envenenado. Isso, de fato, não aconteceu, como comprova a o despertar da tia após a ingestão do suposto veneno.
Por outro lado, a leitura do filme como uma metáfora do fim da ditadura na Espanha impacta com maior contundência. Nesse sentido, Ana representa a própria Espanha, olhando para o período franquista como uma triste infância. Agora adulta, ela poderá crescer, como de fato aconteceu com o desenvolvimento acelerado do país após a ditadura. Porém, o passado deixou marcas profundas e não será esquecido.
Seguindo com as analogias, a mãe representa o povo espanhol, que sofre e fica doente por causa do pai. Este é caracterizado como um militar, claramente representando o governo ditatorial que traiu o seu povo. A tia interesseira assume a guarda das crianças para poder se beneficiar financeiramente e flerta com o amigo militar do cunhado falecido. Ela diz a Ana que a traição do pai que ela testemunhou foi uma ilusão e que ela deve se esquecer disso. Assim, a tia representa a elite que se beneficia com o governo militar.
Por fim, temos ainda a avó de Ana, uma das personagens mais tristes do filme. Com a saúde frágil, ela está confinada a uma cadeira de rodas e já não fala. Seu único consolo é olhar as antigas fotos de um passado mais feliz. Essa avó representa o povo espanhol maduro, que não perdeu apenas sua infância, mas sua vida adulta inteira sob um regime ditatorial. Depois de tantos anos de opressão, esse povo perdeu a voz.
Recurso de narrativa
Além de quebrar a quarta parede com Ana adulta contando seu passado para o espectador, o diretor Carlos Saura usa outras opções criativas para contar essa narrativa complexa. Na maior parte do tempo, acompanhamos a menina Ana em flashbacks que a sua memória preservou com fidelidade. Porém, em outros, testemunha lembranças embaralhadas, onde a fantasia insiste em borrar os fatos. Por exemplo, em situações que são recorrentes com alguma alteração. Ou seja, como acontece nos sonhos. Assim, vemos mais de uma vez Ana dizendo que não consegue dormir, sendo então surpreendida pela sua mãe. Aliás, em duas dessas ocasiões em relatos similares, Ana acredita que envenenou as duas pessoas de sua família de quem ela não gostava.
Entre essas recorrências, está a execução repetida da canção “Porque te vas”, de J. L. Perales, cantada por Jeanette. É uma música melosa e pegajosa que a menina Ana adorava e que servia como um refúgio nessa sua triste infância.
Explicação do título
O título do filme deriva do dito popular “Cria corvos e eles arrancarão teus olhos.” Por um lado, ele traduz a percepção amarga que Ana guardou de sua infância, como uma reação natural para o que recebeu. Ou então, sua vontade de envenenar o pai e a tia, que só não surtiu efeito porque a substância não era veneno. Por isso, vemos Ana se projetando em cima de um prédio e de lá voando como um corvo.
Seja como metáfora política ou como retrato da infância, Cría Cuervos é um filme que encanta e provoca reflexões. Uma das obras primas de Carlos Saura, venceu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes.
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Ficha técnica:
Cría Cuervos (1976) Espanha. 105 min. Direção e roteiro: Carlos Saura. Elenco: Ana Torrent, Conchita Pérez, Mayte Sanchez, Geraldine Chaplin, Mónica Randall, Florinda Chico, Josefina Díaz, Germán Cobos, Héctor Alterio, Mirta Miller, Julieta Serrano.
Onde assistir?
Cría Cuervos está na programação do Festival “Volta ao Mundo: Espanha” da plataforma Belas Artes à la Carte, entre os dias 3 e 16 de junho de 2021.
Conheça também o documentário Saura(s).