Em La Chimera, retorno à ficção de Alice Rohrwacher após Lazzaro Felice (2018), Josh O’Connor, um dos “rivais” do filme de Luca Guadagnino, interpreta Arthur, ex-presidiário inglês que vai procurar sua namorada Beniamina (Yle Vianello).
Ele retoma contato com seus companheiros de busca de objetos históricos, meio que um grupo de arqueólogos amadores (e clandestinos, que abrem tumbas) e reencontra também a mãe de Beniamina, Flora (Isabella Rossellini) e sua empregada Itália, vivida pela talentosa atriz brasileira Carol Duarte, naquele que pode ser o papel de sua carreira.
Isto porque se desenvolve logo um tipo de cumplicidade entre Itália e Arthur. Eles se comunicam em diálogos meio quebrados, também por olhares, por sinais (ao som de Kraftwerk), e logo no começo Itália já oferece ensinar italiano para Arthur, que pronuncia errado uma palavra (“não é ‘occhie’, é ‘occhi'”, ela observa, ensinando o plural de olho).
O filme se constrói praticamente dentro dessa relação de futuro incerto. E por causa da interpretação de Carol Duarte. Quando ela está em cena, com seu jeito meio desengonçado e os olhos (occhi) bem abertos, o filme cresce. Como ela está bastante em cena, mesmo sem ser a protagonista, talvez seja o ápice de Rohrwacher na direção.
O protagonista é Arthur, moço silencioso, de atitudes imprevisíveis e motivações misteriosas. Parece ser incapaz de se assentar, seja num relacionamento ou numa moradia. Prefere a vida de andarilho, vivendo do que encontra para vender – ele tem um especial talento para sentir o que há debaixo da terra.
Itália é uma personagem livre em um país machista. Neta ou bisneta simbólica da Nádia de Rocco e Seus Irmãos, a personagem da incrível Annie Girardot, Itália quebra qualquer direcionamento que a trama possa seguir e desloca uma obsessão do protagonista, a de encontrar Beniamina. O inglês que encontra a Itália. Em sua desorientação, Arthur encontra na moça um pouso seguro, mesmo que temporariamente.
A diretora ainda tem noção do peso da história. Tanto da história que está sob o solo de vários sítios italianos, anos e anos de história das artes escondidos em tumbas e túneis subterrâneos, quanto a história do cinema. Numa cena, eles descobrem uma câmera escondida debaixo da terra. Quando abrem a tampa, parte da pintura que adorna as paredes começa a sofrer a ação do ar e se desbotar. É uma clara homenagem a um dos momentos mais belos de Roma (1972), de Fellini. No final da cena, eles fogem da polícia, sem saber que era outro grupo de arqueólogos clandestinos disfarçados de polícia.
La Chimera vem se somar a O Sabor da Vida, de Tran Anh Hung, Rivais, de Luca Guadagnino, talvez Garra de Ferro, de Sean Durkin, embora estes últimos com menos força, como uma revanche do maneirismo, que pode enfim perder a carga negativa com que os cinéfilos de agora encaram o termo. Não são filmes maneiristas em sua maior parte, mas têm partes muito maneiristas, bem encaixadas no todo. Rohrwacher, por exemplo, chega a virar sua cãmera de cabeça para baixo durante uma cena no início.
Mas seu trabalho em Le Chimera reside mais no simbólico. Como em Oito e Meio de Fellini, citado enviesadamente numa sequência dentro de um trem, nem sempre sabemos ao certo o que é sonho, lembrança, delírio ou realidade.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
La Chimera | 2023 | 130 min | Itália, França, Suíça, Turquia | Direção: Alice Rohrwacher | Roteiro: Alice Rohrwacher, Carmela Covino, Marco Pettenello | Elenco: Josh O’Connor, Carol Duarte, Vincenzo Nemolato, Isabella Rossellini, Alba Rohrwacher, Lou Roy-Lecollinet, Yile Yara Vianello, Giuliano Mantovani, Melchiorre Pala.
Distribuição: Filmes da Mostra.
Assista ao trailer aqui.