O lugar-comum é dizer que uma continuação é sempre pior que o filme original. A continuação da continuação, então, tende a ser detestada como filhote de cruz-credo. Como todo lugar-comum, esse está cheio de manifestações que o negam: Gremlins, O Poderoso Chefão, Um Tira da Pesada, De Volta para o Futuro, Star Wars, Star Trek, John Wick… são alguns exemplos de séries, ou sagas, ou franquias (mercadologicamente falando) cujos segundos e/ou terceiros filmes são melhores – ou ao menos do mesmo nível – que os primeiros. Mas, convenhamos, o lugar-comum se encaixa perfeitamente na trilogia Matrix, a ponto de o terceiro se tornar uma espécie de caricatura involuntária, apresentando os piores desenvolvimentos que uma obra de ficção científica poderia ter.
Neo (Keanu Reeves), Trinity (Carrie-Anne Moss) e Morpheus (Laurence Fishburne) reúnem-se para evitar um ataque das máquinas contra o exército da resistência humana. Referências ao filme noir, a Alice no País das Maravilhas e ao Mágico de Oz, à série O Exterminador do Futuro, ao wuxia, a Bruce Lee, Star Wars e diversas outras piscadelas à cultura pop se embaralham no primeiro Matrix (1999), esta ficção científica noir que marcou a virada do milênio. É como se fosse um catálogo de cinema de ação ao longo das décadas, construído como uma fábula contra a alienação. É bem infantil em alguns pontos, mas funciona bem como espetáculo. Como a maioria das pessoas prefere continuar alienada, manipulada pelos verdadeiros poderosos – o pessoal do dinheiro – a Matrix, ou seja, essa realidade virtual criada para a ilusão de que o mundo não sofreu um colapso, dificilmente é vencida.
Matrix Reloaded
Em Matrix Reloaded (2003), há uma expansão na trama, que agora passa a mostrar a humanidade que sobrevive à tirania das máquinas em Zion, a cidade localizada mais perto do centro da terra (onde ainda há calor). A luta para protegê-la se torna algo grandioso, com o qual as irmãs Wachowski não lidam tão bem. As cenas de ação são inúmeras e genéricas, meio que ditadas pelo sucesso das cenas de ação do primeiro, sobretudo a melhor delas: a invasão do prédio militar. Este segundo longa é mais apocalíptico e messiânico, a ideia de indivíduo e crença particular nas escolhas é praticamente substituída pelo ideal de resistência coletiva e salvação graças ao escolhido.
A trama torna-se ainda mais infantil que no primeiro filme: sempre alguém diz que estava à espera de Neo, o vilão que se multiplica como num desenho animado (o Multi-homem), vilões cheios de poderes que sempre acabam na luta corporal, a transformação de Neo num semideus (por que não, se é tudo uma outra dimensão? Tudo fica arbitrário porque tudo é possível), a necessidade de ainda se fazer escolhas – porque, afinal, a trilogia só existiu porque Neo escolheu a pílula vermelha, e daí em diante escolheu sempre pela manutenção da aventura. E há Lambert Wilson em uma participação antológica, o que salva o filme do desastre.
Matrix Revolutions
Infelizmente, isso não acontece com Matrix Revolutions (2003), filmado logo em seguida e lançado poucos meses depois. É na verdade, uma espécie de continuação, já que Matrix Reloaded termina sem conclusão, tal como O Império Contra-Ataca, de outra saga. A proximidade na filmagem e no lançamento tem a vantagem comercial de não deixar a peteca cair, aproveitando os impulsos da bilheteria do segundo longa para o terceiro. O problema é que, artisticamente, significa muito mais uma segunda parte de um cansativo longa com quase quatro horas e meia do que um terceiro longa propriamente dito, que pudesse corrigir os rumos mal traçados do segundo.
Aqui, continua a infantilidade do anterior logo no início: a oráculo fala uma coisa para Trinity e Morpheus, na cena seguinte um outro personagem diz a mesma coisa para Neo. A trilogia termina de forma bem frágil, nem Lambert Wilson salva. O que poderia vir, quase vinte anos depois, sendo que o cinema de ação piorou consideravelmente de lá para cá?
Matrix Resurrections
Matrix Resurrections (2021) é a resposta, que mostra uma nova reunião da dupla Neo e Trinity com um Morpheus alternativo. A solução encontrada para desenterrar a saga foi um videogame: a Trilogia Matrix, criado por Neo, que agora voltou a ser Thomas Anderson sem lembrar direito que um dia foi Neo (ou Neo foi sempre sua criação? A série poderia ser agora repensada em nossa cabeça?).
Chamado por seu chefe, inspiração, segundo ele, para a criação do grande vilão agente Smith, ele fica sabendo que a Warner, real produtora da Trilogia Matrix (os filmes), quer fazer uma sequência do jogo (como a sequência do filme). Está difícil de seguir? Essa é a graça. Fácil, e de certo modo efetiva, maneira de brincar com esse retorno extemporâneo. Humor nunca foi o forte da franquia. Mas agora passa a ser. Cinema, claro, está fora de moda. O negócio agora é criar videogames. É o que deixa as pessoas milionárias, e Thomas Anderson se tornou uma celebridade por ter criado Matrix.
Ele agora faz psicanálise para esquecer as visões que o assombram (visões dos filmes anteriores), se entope com pílulas azuis, para não sair da realidade (mas que realidade?), é cabeludo como John Wick e ama secretamente a mulher que frequenta o mesmo bar que ele, Tiffany (que aparentemente não sabe que era Trinity). Tiffany é casada, tem filhos. O mundo mudou, todos eles envelheceram. O que temos, afinal, é um jogo que emula a trama da trilogia original sobre um mundo de emulação. Um simulacro do simulacro, construção em abismo que traz alguma originalidade a este novo longa.
Terreno das explicações
Se Thomas Anderson não sabe que é Neo e pensa ter inventado Matrix, o filme volta ao princípio, das escolhas, da aceitação, do acreditar, da luta contra o simulacro e pela salvação da humanidade. Como voltar a tudo isso sem passar pela sátira? A escolha, então, pelo menos até esse ponto, se revela acertada. Após 40 minutos, porém, entramos novamente no terreno das explicações, e o filme começa a patinar. Lá vamos nós viver isso tudo de novo. Afinal, era o que os fãs queriam.
Neo aprende a descobrir quem é, seus poderes, suas responsabilidades (sim, grandes poderes trazem grandes responsabilidades, mas isso também é de outra franquia). O aprendizado é rápido: de uma hora para outra, Thomas Anderson se transforma em Neo e suas dúvidas passam a ser as mesmas de outrora. E, mais uma vez, como no primeiro filme, é o amor de Trinity que lhe dá o poder de ser o Escolhido.
Referências
Agora, as referências são, na maior parte, a acontecimentos ou explicações dos três filmes prévios: Deja Vu (sem acentos) é o nome do gato do psicanalista (vivido pelo sempre ótimo Neil Patrick Harris); imagens do primeiro filme surgem num televisor antigo; Smith agora tem outra cara, não mais a de Hugo Weaving; Zion foi destruída e Io, uma nova cidade, foi construída para os humanos; o Morpheus original, de Laurence Fishburne, parece ter morrido, restando apenas uma estátua dele no Conselho, representando seu mandato como presidente; o francês interpretado por Lambert Wilson agora é um mendigo que vocifera contra a modernidade de facebook e quetais e lamenta que os filmes de hoje não se pautam pela originalidade. Então, ainda há espaço para o filme continuar rindo de si, mas no meio de indagações semelhantes às da trilogia original e de cenas de ação filmadas de modo ainda mais indigente.
Sem correr o risco da dar spoiler, até porque neste filme, ao contrário de em Benedetta, ou Mães Paralelas, spoilers são realmente prejudiciais, penso que Matrix Resurrections vale apenas por seus primeiros 40 minutos, justamente enquanto tira sarro de si e dos fãs. Quando começa a repisar os mesmos motivos do filme original, com algumas variações interessantes no meio de muitas outras tolas, sentimos um gosto de coisa requentada, déjà vu. Por mais que seja difícil criar coisas novas no blockbuster hollywoodiano em tempos de algoritmos e homens de negócio que nada entendem de cinema, dava para esperar mais deste novo longa pelo que promete em seus minutos iniciais.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
___________________________________________
Ficha técnica:
Matrix Ressurrections | The Matrix Ressurrections | 2021 | 148 min | Estados Unidos | Direção: Lana Wachowski | Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell, Aleksandar Hemon | Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jonathan Groff, Jessica Henwick, Neil Patrick Harris, Jada Pinkett Smith, Priyanka Chopra Jonas, Christina Ricci, Lambert Wilson, Andrew Lewis Caldwell.
Distribuição: Warner.