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Benedetta (filme)
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Benedetta | Por Sérgio Alpendre

Avaliação:
8.5/10

8.5/10

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Crítica | Ficha técnica

Esperado novo longa de Paul Verhoeven, Benedetta estreia finalmente no circuito comercial brasileiro em janeiro de 2022, após passagem ruidosa pelo Mix Brasil e pelo Festival do Rio. O filme é produzido por Saïd Ben Saïd (o mesmo de Elle, longa anterior do diretor) e baseado no livro da historiadora Judith C. Brown, intitulado “Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Pescia”, de 1986. O livro trata de uma figura real que existiu numa Renascença expandida, que vai até o século 17, não os costumeiros séculos 15 e 16 que a maioria dos historiadores estabelece.

A trajetória de Verhoeven

Estranhos estes tempos em que um filme desse realizador é esperado com ansiedade. No começo da minha cinefilia, na distante virada dos anos 1980 para os 1990, Verhoeven vinha da obra-prima Robocop (1987) e passou a fazer filmes provocativos como O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), mas apesar da famosa cruzada de pernas de Sharon Stone no segundo filme, esses seus trabalhos americanos continham pouca provocação perto do que ele havia feito na Holanda, principalmente em Louca Paixão (1973), Spetters (1980) e O Quarto Homem (1983).

Em meados dos anos 1990, Showgirls (1995) e Tropas Estelares (1997) o colocaram numa espécie de lugar a que só os cinéfilos mais dispostos a mergulhar na lama acessavam. Injusto, claro, mas cada época tem seus equívocos. Seja como for, em Hollywood Verhoeven não encontraria mais espaço. Ou encontraria um espaço limitado, que impediria sua plena autoria de se manifestar, caso de O Homem Sem Sombra (2000), disparado o seu pior filme americano. Hoje, tanto Showgirls quanto Tropas Estelares foram reabilitados por boa parte da cinefilia, não são mais majoritariamente vistos como vagabundos, embora alguns ainda os vejam assim, e seus filmes são recebidos com um entusiasmo que, salvo engano, ele nunca antes havia despertado, por mais que merecesse.

Nos últimos anos, contudo, o cineasta devia um filme à altura desse entusiasmo. Na Holanda, filmou o constrangedor Traição (2012), que até revisão redentora continua sendo o pior trabalho de sua carreira. Elle (2016) é decepcionante, por mais que tenha causado tanto furor por quem o achou provocativo quanto revolta por quem o achou misógino. Não é tanto um nem outro, e apesar de se aguentar com dignidade, é pouco para justificar qualquer empolgação autoral.

Entre o litúrgico e o sexploitation

Claramente superior, Benedetta ainda não chega perto da excelência esperada, mas resgata algo importante do melhor Verhoeven: a capacidade de se mover entre o mais sofisticado e a vulgaridade, entre o litúrgico e o sexploitation. Dentro de uma perspectiva mercadológica discutível, Verhoeven vai do gosto baixo ao gosto alto, de Jesus Franco a Carl Theodor Dreyer, praticamente sem passar pelo gosto médio (é como se fosse um anti-Woody Allen, o patrono do gosto médio). É por isso que ele põe abaixo essa mesma perspectiva (que, afinal, é bastante tola) e desconcerta um público que se ofende com tudo, mas não costuma se desconcertar com nada, pois o desconcerto se tornou parte do “circuito de arte” (essa expressão lamentável que Verhoeven torna sem sentido mais uma vez).

A trama

A trama do filme é fácil de seguir. Entregue a um convento por seus pais, a pequena Benedetta dá sinais de que é uma criança especial. Uma estátua pesada cai em cima de seu corpo e ela nem se machuca. Dezoito anos depois, encontramos Benedetta com o corpo e o rosto da excelente atriz Virginie Efira, e ela começa a revelar traços de uma suposta santidade. Os estigmas do corpo de Cristo na cruz começam a aparecer em seu corpo e coisas estranhas se passam com ela. Seria mesmo uma santa? Alguns acham que sim, como o abade interpretado por Olivier Rabourdin. Outros desconfiam de picaretagem, como a madre superiora vivida por Charlotte Rampling e algumas das freiras.

O próprio Verhoeven parece desconfiar de picaretagem, mas inteligentemente nos deixa na dúvida, apesar de um ou outro sinal de farsa (seriam pistas falsas? testemunhos visuais mentirosos de uma personagem aliada?). Mais importante: ele nos mostra que Benedetta acredita em seus poderes e em suas visões. Mostra seus sonhos com um Jesus Cristo violento e salvador (disparado as imagens mais desinteressantes do filme), que às vezes se revela uma outra coisa, um demônio disfarçado ou um Cristo hermafrodita quase nos moldes do que Larry Cohen mostrou em Foi Deus que Mandou (1976), ou que o mesmo Verhoeven nos deu em O Quarto Homem – é a única cena de sonho que vale aplauso (e como!).

Liberdade

Mostra também a incrível personalidade da protagonista, geralmente externada por uma entonação de voz mais grave, assustadora, com os olhos expressivos (não imaginamos outra atriz nesse papel senão Efira). Aliás, uma entonação que se percebe ser da própria atriz, não adulterada demais para parecer de uma possessão, mas que nos deixa na dúvida. Mais importante ainda: para Benedetta, entregar-se ao sexo não é pecado. Ela ama de fato a moça rebelde, e amar nunca pode ser algo negativo. Seu lema passa a ser o que ouviu de outra freira do convento: “Deus fala em diversas línguas, se teu coração é corajoso o suficiente para se abrir a ele”, interpretada a seu modo como um lema de liberdade (que para ela nunca é libertinagem).

A freira se torna a nova madre superiora após os sinais de santidade, e passa a acolher em seus aposentos uma jovem rebelde que foi vendida ao convento. Elas se tornam amantes, e Verhoeven chega quase ao sexo explícito para mostrar o êxtase em seus corpos. Ofende os guardiões da decência, obviamente, mas é puramente lógico. Nessa dualidade entre corpo e espírito, ambos precisam ser intensificados, assim como todas as respostas a esse conflito. A principal das respostas vem do núncio interpretado brilhantemente por Lambert Wilson. Mostrado desde sua primeira aparição e até a última (“você mente até o fim”) como um ser desprezível e corrupto, essa figura de autoridade irá catalisar o confronto final entre a pureza de Benedetta e o cinismo (que se confunde com lógica) de parte da igreja.

Um milagre?

Há um outro lado, como sempre nos bons filmes de Verhoeven. Ao acreditar muito em sua suposta farsa, Benedetta transforma-a em realidade. Acredita tanto na veracidade daquilo que parece charlatanismo que as pessoas sentem seu carisma e acreditam também. É desse modo que a personagem de Rampling precisa, inicialmente, concordar que é um milagre. Foi muito bem vendido como um milagre, então milagre passa a ser. No letreiro final, somos informados de que Pescia, a cidade do convento de Benedetta, foi poupada pela peste que atingiu todo o país. Enquanto aqueles que suspeitavam dela foram punidos (principalmente o núncio e a madre superiora anterior). Benedetta teria mesmo esse poder? Ou foi apenas uma coincidência?

Verhoeven vai a uma história real do século 17 para comentar a cultura das celebridades do século 21, quando tudo é simulacro e a imagem que se passa é muito mais importante do que a verdadeira essência de uma pessoa.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.


Benedetta (filme)
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