As primeiras imagens de Tia Virgínia, segundo longa de Fábio Meira, mostram uma mulher de cabelos brancos acertando um relógio antigo de parede. Com paciência, ela coloca o ponteiro grande na marca das 9 horas, depois das 10, depois das 11, 12, e no 1, no 2, e a cada vez espera as badaladas correspondentes à hora cheia. Essa cena serve para preparar o espectador tanto para uma dilatação do tempo narrativo como para um temperamento obsessivo da personagem.
Virgínia mora num casarão de interior e cuida da mãe senil, que o filme identifica como Dona Cândida (Vera Valdez), dando-lhe comida e banho. Estamos no dia 24 de dezembro e ela espera suas irmãs para a ceia de natal na casa onde costumavam se reunir antes da morte do patriarca. A primeira a chegar é Valquíria, vivida por Louise Cardoso. Junto dela chega o filho, Bernardo (Iuri Saraiva), um jovem que inicialmente se apresenta como alguém decente, mas logo se revela um pulha. Em seguida chegam a outra irmã, Vanda, vivida por Arlete Salles, seu marido Tavares (Antonio Pitanga) e a filha deles, Ludmila (Daniela Fontan).
À casa já havia chegado Soraia (Amanda Lyra), a empregada contratada por Virgínia, mas de quem todos os outros querem tirar uma casquinha, principalmente Bernardo. A cena em que ele a agarra para forçar um beijo resvala, no tom, em Fassbinder, embora Fábio Meira tenha o pudor de deixar o abuso fora de quadro, talvez com medo de perder parte da plateia. Mesmo assim, o asco que sentimos pelo personagem é grande.
A reação de Soraia a essa investida, tanto imediatamente quanto um tempo depois, é uma das opções mais marcantes do filme. Seus olhos marejados e a voz trêmula colocam bem a posição da mulher numa situação como essa, agravada ainda pelo conflito de classe. A interpretação ótima de Amanda Lyra reforça esse momento dramático. Mas me pergunto se alguma nuance em Bernardo não seria mais interessante que o retrato asqueroso que é pintado. Um cara bonzinho e assediador, por exemplo, seria mais interessante na trama, não um almofadinha asqueroso que grita desnecessariamente com a tia carinhosa e age como se a empregada não fosse gente.
O filme é uma lavação de roupa suja que une o Carlos Saura de Mamãe Faz Cem Anos (1979) ao Thomas Vinterberg de Festa de Família (1998). Existe uma mágoa muito grande de Virgínia com suas irmãs. No decorrer do filme entendemos melhor a razão dessa mágoa. Virgínia é a única solteira, e por isso ficou incumbida de cuidar da mãe de que ninguém queria cuidar. Esse “fardo” para as personagens remete a Parente é Serpente (1994), de Mario Monicelli: Virgínia esquece (de propósito?) da colocar fralda na mãe, que urina durante o almoço e fica visivelmente constrangida, embora ninguém ali tenha sensibilidade para perceber o constrangimento; a mãe ainda fica ausente na ceia, num sinal claro de que ninguém ali se importa de fato com ela.
Apesar de o título indicar um ponto de vista de alguém jovem, talvez de Ludmila, única personagem vista inteiramente como positiva, as principais atrizes são bem mais velhas do que o habitual no cinema. As três irmãs iniciadas com a letra V são vividas por atrizes que já passaram dos 65 anos. Vera Holtz completou 70 anos em agosto de 2023. Louise Cardoso, a mais jovem, está com 68 anos. As mais velhas, Vera Valdez e Arlete Salles, têm, respectivamente, 87 e 85. Curiosamente, só dois anos separam as duas que interpretam a mãe e a filha mais velha na vida real. Coisas que o cinema pode fazer. Por sinal, Arlete Salles faz uma brincadeira nesse sentido quando fala que seu braço parece tão velho quanto o de sua mãe.
Numa época em que o etarismo é parcamente (e porcamente) combatido, sendo até bem aceito entre jovens de esquerda (ou que se pretendem de esquerda), que não se constrangem em pedir aposentadoria de pessoas com mais de 40, ou chamá-las de tio, tia, ou tiozão, tiazona, geralmente com algum comentário depreciativo colado (basta uma passeada nas redes sociais para constatar isso), é muito salutar a escolha por essas atrizes, que muito podem nos oferecer no cinema.
É também um chamado de atenção para os problemas da terceira idade, em uma época em que as pessoas, no geral, vivem mais e em melhores condições muito depois dos 65 anos. A mãe, que entende o que falam perto dela (Virgínia é a única personagem que acredita nisso, ou diz acreditar), pode ter seu passado terrível de opressão e manipulação. É o que se subentende por algumas falas. Mas é uma pessoa em seu momento de maior vulnerabilidade, um ser humano indefeso. Que seja um fardo cuidar dela e que todos deixem isso bem claro diz muito das gerações que vieram depois, pautadas por futilidades e acúmulos financeiros.
Tia Virgínia começa como um filme de encontros familiares e celebração, mas vai se abrindo ao grotesco e a um clima que absorve o horror com alguma felicidade. As opções de câmera e montagem indicam um crescendo na tensão e a possibilidade de que algo trágico venha a acontecer. Nem sempre as opções narrativas são as melhores possíveis: a fala de Pitanga, “ué, tá chovendo?”, no momento em que está colocada, me pareceu uma opção bem equivocada; toda a cena, aliás, me soou crueldade fácil; também o desfecho do episódio do assédio a Soraia, em seu confronto com Valquíria, lembra algumas coisas ruins de Que Horas Ela Volta? (2015).
Mas é evidente que o caminho do estranhamento é tomado com certa convicção a partir da evolução das farpas trocadas entre elas. Cada fala sai como uma navalha. A coisa mais fácil é as personagens caírem em algum tipo de mal-entendido que corrói ainda mais a relação entre elas. Isso quando não são bem-entendidos mesmo. Para esse caminho ser percorrido com maior sucesso, é fundamental o trabalho com as atrizes. Os atores, Saraiva e Pitanga, tornam-se cada vez mais coadjuvantes, um pela fragilidade física e mental, outro pela fragilidade de caráter. O filme é das mulheres.
Cabe destacar o ótimo trabalho com o som. Sussurros e conversas paralelas são sempre audíveis e compõem, por vezes, um manancial sonoro dos mais instigantes, junto de pratos e taças que caem. A trilha sonora por vezes força a barra no sentimental. O “Bolero” de Ravel, por outro lado, com sua implacabilidade apocalíptica, combina perfeitamente com o tom perseguido até então.
Mais arriscado e acidentado que As Duas Irenes, o primeiro longa de Meira, Tia Virgínia vale pelo elenco bem dirigido (Vera Holtz dando show no final) e pela atenção aos detalhes que o espectador menos atento pode nem perceber (exemplos: a atenção às reações minimalistas da mãe em diversos momentos da trama, o olhar de Vera Holtz para a câmera, o falseamento do tempo com o “Bolero” e o amanhecer chegando). É um filme doente, como o considerei na primeira visão. Mas um bom filme doente, no que se ressaltou com a revisão.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Tia Virgínia | 2023 | 97 min | Brasil | Direção e roteiro: Fabio Meira | Elenco: Vera Holtz, Louise Cardoso, Antonio Pitanga, Arlete Salles, Vera Valdez, Amanda Lyra, Daniela Fontan, Iuri Saraiva.
Distribuição: Elo Studios.
Trailer aqui.