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Um Corpo que Cai (filme)
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Um Corpo que Cai | Por Sérgio Alpendre

Avaliação:
10/10

10/10

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Crítica | Ficha técnica

À altura de Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), eleito pela mais recente enquete da BFI (2012) como o melhor filme de todos os tempos, desbancando Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), Hitchcock já se encontrava seguro para realizar aquilo que sempre quis: um filme com um herói monstruoso. Assim é Scottie Ferguson, personagem de James Stewart. Após uma história real de falso culpado – O Homem Errado (The Wrong Man, 1956) – Hitchcock iria até o fim com a ideia esboçada muitos anos antes em Suspeita (Suspicion, 1941).

O homem infantilizado, que brinca de equilibrar a bengala, torna-se homem graças a um grande trauma, mas torna-se também um monstro. É certo que ele foi alvo de um golpe igualmente monstruoso de seu amigo antigo Gavin Elster, mas o que pretendeu fazer com Judy, transformando-a obsessivamente em Madeleine sem saber que Judy e Madeleine eram a mesma pessoa, é talvez até mais monstruoso, pois uma mulher então inocente aos seus olhos teria de abdicar de sua vida para encarnar uma outra vida. A consciência, nesse caso, é o que faz a diferença, pois Scottie não sabia que tinha sido enganado, e tanto Judy quanto Gavin Elster, o marido de Madeleine, não sabiam que ele iria se apaixonar perdidamente por uma imagem, um fantasma.

Duas Madeleines morrem

“Não devia ter acontecido”, diz Judy na pele de Madeleine que por sua vez está na pele fictícia de Carlota Valdez. A paixão poderia ter estragado os planos do marido que queria se livrar de sua esposa (a Madeleine real). No fim, ou melhor, já no meio do filme, duas Madeleines morrem, a real, esposa do inescrupuloso empresário, e a fictícia, composta por Judy para ludibriar Scottie. Este, por sua vez, irá providenciar, ainda que acidentalmente, a morte da terceira Madeleine, a que ele recriou a partir de Judy – tentar fazer melhor o que outro tinha feito antes (estaria Hitchcock dizendo que realizadores de remakes são monstruosos, a não ser que o remake seja de uma obra deles mesmos?). No final, ele até se revolta por não conseguir fazer tão bem quanto Gavin Elster. Seu “remake” ficou claramente inferior aos seus olhos.

Mais uma vez, Hitchcock mostra uma absolvição em julgamento que deixa uma mancha moral no protagonista. Assim foi em A Tortura do Silêncio (I Confess, 1953), em que o júri e o juiz deixam entender que o certo seria condenar o padre interpretado por Montgomery Clift, antes de concederem a absolvição. Assim é com Scottie Ferguson, que é obrigado a ouvir o juiz falar em falta de iniciativa e em deixar o local da morte, acrescentado de um “isto não pode interferir no julgamento” e de um “é um problema entre ele e sua própria consciência”. Mais uma vez, Hitchcock representa os homens da lei com alguma crueldade, o que não isenta Scottie de ser igualmente cruel após essa experiência.

A questão de verossimilhança

O filme não explica como Scottie saiu da calha onde estava pendurado no início. O único que tentou ajudá-lo, um policial que perseguia o mesmo criminoso, caiu e morreu, atraindo atenção de algumas pessoas, que podem ter chamado os bombeiros, que colocaram uma rede de proteção, enfim, algo que não sabemos como aconteceu. O corpo do policial foi o primeiro entre três corpos que Scottie verá cair ao todo. Então é como se todo o filme fosse um delírio entre duas alturas: Scottie pendurado na calha, Scottie observando o corpo que caiu de cima da torre. É um personagem suspenso, como escreveu o crítico Robin Wood. Essa falta de explicação revela a maior afronta de Hitchcock aos senhores verossímeis de que tanto reclamava para Truffaut. Para entrar em Um Corpo que Cai, o espectador precisa se desvencilhar das regras tolas da verossimilhança.

Uma operação complexa, que toca na questão da verossimilhança embora não seja tomada por ela, está na reaparição de Madeleine como Judy. Ou melhor, de Judy como Judy de fato, já que Madeleine era o que Scottie via nela. Essa aparição tem um fator complicador: para funcionar, o público deveria comprar a ideia de que Judy era parecida com Madeleine, mas não era Madeleine. Só assim seria possível entender a transformação pretendida por Scottie e só assim ela teria efeito. Por outro lado, isso não deveria ser definitivo. Em algum momento, o público teria de se adiantar a Scottie. Algo deveria ser contado ao público para que a tensão deixasse de ser “será que ele vai conseguir operar a transformação pigmaliana?” para “será que (ou quando) ele vai perceber que foi enganado?”.

Dependentes da farsa

Após o encontro, acontece a bela cena em que ela tenta escrever para ele contando toda a verdade. Só que a interpretação de Judy (e a de Kim Novak nesse duplo movimento de representação) é extremamente convincente. Scottie bate à sua porta, ela tem a surpresa, mas não revela qualquer abatimento. Judy parece estar de fato diante de um estranho, alguém que ela nunca havia visto. O nervosismo posterior entendemos como uma reação natural de uma moça diante de um estranho que faz perguntas pessoais invadindo o espaço dela. É perfeitamente compreensível que ela reaja com alguma tensão à investigação de Scottie. Essa operação não perde o interesse em revisões. Pelo contrário. Ao sabermos dela, começamos a perceber os mecanismos por trás do engenho hitchcockiano, a maneira como ele vai enredando seus personagens e fazendo-os perder o controle. Tanto Judy quanto Scottie tornam-se dependentes da farsa.

Ao nos retardar por cerca de nove minutos a informação de que as duas são a mesma mulher, e com essa informação nos contar toda a trama para o assassinato da verdadeira Madeleine, Hitchcock consegue operar em nós uma efêmera dúvida que não nos afasta da trama, mas a intensifica. O que afinal estávamos vendo nesses nove minutos? Um duplo? Um fantasma? Uma projeção da mente de Scottie? A partir da revelação, a tensão passa a ser outra. Com a dúvida da escrita da carta, passamos a simpatizar mais com a personagem de Novak, a torcer por ela. O que vai fazer com que tudo que vem a seguir seja banhado de tons melancólicos e aflitivos.

Transformação

O verde que ela veste se tornará predominante na nova transformação. A janela de Judy permite entrar uma luz verde de fora, que contorna sua silhueta de um modo pouco visto em Hollywood. Scottie e Judy passeiam por uma área que impressiona pelo verde da vegetação em contraste com a monumentalidade da construção. É sob uma luz verde enevoada que ela se revela completamente transformada. Longe de querer atribuir ao filme uma lógica das cores, o fato é que verde não era uma cor comumente utilizada por diretores de fotografia e cineastas no trato com a luz. Diziam que é uma cor difícil, traiçoeira.

O efeito que se consegue com a luz verde tende ao artificial. Aqui, a luz atinge um tom melancólico, de algo que apodrece ou cria musgo. Hitchcock, esse sádico, nos faz simpatizar com o fantasma para lamentar sua danação. Na revisão, o momento em que ela rasga a carta com a confissão é o mais aflitivo, pois é o que sela essa danação, mais do que o colar no pescoço. Ela escolheu seguir em frente. Algum deslize, em algum momento, a denunciaria.

Scottie encontra Judy

Mas voltemos um pouco no filme. Voltemos ao momento em que Scottie, após o tempo que passou catatônico no hospital, percebe Judy caminhando na direção dele com algumas colegas de trabalho. O corte é rápido, mas não o suficiente para percebermos (e confirmarmos, graças à possibilidade de voltar o filme) que Judy percebe a presença de Scottie.

Sua reação não temos, mas o segundo que vemos de seu olhar nos informa que ele parece direcionado, pela altura e pela direção, ao lugar onde está Scottie, diante de uma vitrine de flores. Por que ela para na frente dele, sendo observada de perfil (a culpa de perfil, lembrando Joseph Cotten em A Sombra de uma Dúvida)? Para que ele a siga e possam retomar o contato? Para se livrar de alguma suspeita, já que a reação normal seria desviar o olhar, atravessar a rua ou andar para o lado contrário? Esperava ela que ele a aceitasse como Judy, não como Madeleine? Ela percebeu estar sendo seguida? Viu Scottie entrando no prédio e, portanto, estaria de prontidão para representar ao atender a porta? São questões que Hitchcock deixa para os senhores verossímeis responderem.

O horror

Nunca Hitchcock tinha ido tão longe no horror, e só há uma forma de entender a aparição final da freira: o horror. Foram dois segundos de horror que bastaram para a tragédia definitiva. A mulher que viveu duas vezes (evocando o título português que não me parece mais equivocado como parecera) conquistou Scottie duas vezes, e nas duas vezes o relacionamento foi fatal. O sistema de duplicidades de Hitchcock nunca foi tão genial e doentio. Duas Madeleines, duas Judys, duas Carlottas, duas quedas da torre, duas joias em dois pescoços diferentes, dois recados debaixo da porta (um ele vê na hora, outro nós ficamos sabendo tempos depois), dois vestidos cinzas (o da falsa Madeleine e o do corpo que cai).

Há espelhamentos também, e contrários. A modernidade de Midge (Barbara Bel Geddes) contrasta com o arcaísmo de Scottie, mas este encontra um par no amigo industrial, Elster, cujo escritório está cheio de fotos antigas de São Francisco: uma época mais livre, em que um homem tinha poder, é o que diz mais ou menos Elster. Temos então um conflito entre clássico e moderno, que pode ser bem espelhado pela forma do filme, que alterna os registros do clássico e do moderno de forma bem equilibrada.

Monstro

Quando o menino vira monstro e passa a perambular pelos lugares por onde Madeleine passou, não há mais espaço para Barbara Bel Geddes. Ela some da vida de Scottie e some do filme, sendo sua última imagem um caminhar desesperançado pelo corredor da casa de repouso onde Scottie está internado, tão profundamente perturbado quanto a esposa de Balestrero em O Homem Errado (The Wrong Man, 1956) – os espelhamentos e similaridades entre filmes são também frequentes em Hitchcock. Se ela não pode ter o menino, o monstro ela não quer. Já o homem, só Madeleine teve.

Mas o monstro quer Madeleine assim como a Madeleine que foi construída para ele queria Carlotta Valdes e assim como a Judy por trás de Madeleine já o queria, menino em processo de transformação. E Judy se transforma novamente em Madeleine, mas na segunda vez é um fantasma, como o plano de sua saída do toilette sugere, com um halo iluminado deixando-a quase transparente. Como um Dr. Frankenstein, James Stewart conseguiu completar a operação que Cary Grant poderia ter realizado em Suspeita. Ao transformar Judy num fantasma, torna-se um monstro e, indiretamente, um assassino.

Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, especialmente para o Leitura Fílmica.


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