Uma Família Normal adapta para as telas o livro “O Jantar”, de Herman Koch, que já rendeu três filmes – um holandês, um italiano e um estadunidense.
Esta versão sul-coreana toma várias liberdades em relação ao material original. O enredo não acontece durante um jantar apenas, mas durante alguns dias pontuados por encontros num restaurante chique, e altera as profissões dos protagonistas masculinos, bem como o gênero de um dos filhos deles. Acima de tudo, o filme descarta a gradual solução do quebra-cabeças que revela, aos poucos, o que aconteceu de tão grave.
Ao invés disso, Uma Família Normal atua no desenrolar presente. O evento que desencadeia toda a conversa acontece durante o primeiro jantar que a trama mostra. Dois irmãos, um advogado rico e um médico de classe média, se reúnem para esse habitual jantar semanal, acompanhados das suas esposas. Enquanto isso, o filho adolescente do médico e a filha adolescente do advogado vão às escondidas para uma festinha. Na saída, o filme mostra que os dois entram num beco e começam a chutar, ao que parece, os sacos de lixo que estão na rua.
Porém, no dia seguinte viraliza um vídeo que revela o que os dois fizeram. Eles agrediram um morador de rua que estava dormindo, deixando-o gravemente ferido, com risco de morte. A mãe do menino reconhece seu filho, e a menina acaba se denunciando ao pedir a opinião jurídica do seu pai. No restante do filme, os pais discutem o que devem fazer: entregar os filhos à polícia ou esconder a verdade?
O dilema
O enredo trabalha, principalmente, o dilema dos dois irmãos. A fim de caracterizar a personalidade de cada um, a trama os coloca em posições opostas em relação aos envolvidos em um incidente automobilístico que começou com uma briga de trânsito e acabou num atropelamento intencional. O médico cuida da filha da vítima no hospital, enquanto o advogado foi contratado para defender o agressor.
Essa dicotomia do médico humanista e do advogado materialista parece refletir nos seus respectivos filhos. Isso fica mais evidente no caso da garota, tão individualista e fútil que quer comemorar a aprovação para estudar na Universidade de Cambridge exigindo do pai um carrão de presente, enquanto se mostra indiferente ao falecimento do morador de rua. Já o rapaz, introvertido e vítima de bullying na escola, diz ao pai que está arrependido e parece apenas carente de mais amor e atenção.
No entanto, a parte final do filme indica que essas posições não são tão bem definidas. O médico passa a defender o acobertamento do filho após este se arrepender. Já o advogado muda de opinião sobre o que fazer ao descobrir o que os dois jovens realmente pensam em relação ao acontecido. Para ele, a impunidade da filha só reforçará esse comportamento abjeto que tende, assim, a se agravar.
Uma Família Normal poderia terminar com essa complexa indefinição, mas erra ao entrar na onda atual de sempre querer impressionar mais o espectador. A surpresinha final vai além da conta. E, não é arbitrária, pois uma cena na saída do primeiro jantar trazia uma situação parecida acompanhada do argumento de defesa para o motorista.
Uma adaptação menos empolgante
O diretor Hur Jin-ho realiza um trabalho profissional, como costuma acontecer na produção sul-coreana contemporânea. Filma com conhecimento da gramática cinematográfica, aplicando os recursos (câmera do alto, justaposição de imagens etc.) conforme a cartilha, sempre em prol da narrativa. Mas, sem ousar novidades.
Uma Família Normal, como cinema, é menos empolgante que a adaptação americana de 2017, porque quebra o processo de desenvolvimento presente no livro. As alternâncias de posições aqui soam soltas demais, mudando de direção conforme o que se vai desvendando. Prevalece, assim mesmo, a importância de discutir a impunidade para que se busque um convívio mais humanista da sociedade.
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Ficha técnica:
Uma Família Normal | Bo-tong-ui ga-jog | 2023 | 116 min. | Coreia do Sul | Direção: Hur Jin-ho | Roteiro: Go Rak-sun | Elenco: Sul Kyung-gu, Jang Dong-gun, Kim Hee-ae, Claudia Kim.
Distribuição: Pandora Filmes.