Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, Assunto de Família é um belíssimo olhar para o amor em uma estrutura alternativa.
Em Assunto de Família, o diretor japonês Hirokazu Koreeda retoma o drama familiar, tema de outros filmes seus, como Pais e Filhos (2013) e Nossa Irmã Mais Nova (2015). E, mais uma vez, sobre uma família diferenciada, formada não por laços sanguíneos, mas por afeto. Como diz um dos personagens, uma família escolhida.
A estória começa quando a pequena menina Yuri entra nesse grupo. Primeiro, acompanhamos um garoto e um homem, aparentemente seu pai, aplicando um de seus golpes para furtar alguns itens do supermercado. A dupla age como se praticassem um número de dança muito bem ensaiado, onde todos os passos, todos os gestos, foram planejados para não causar desconfiança. Depois, já anoitecendo, no trajeto para casa, os dois veem Yuri na sacada do apartamento dela, sozinha, com fome e frio.
Então, a fim de ajuda-la, o homem a leva para casa, onde já vivem em cinco pessoas. Aos poucos, descobrimos que não há parentesco nessa suposta família. A propriedade pertence à mais velha, que todos chamam de avó, responsável por formar o grupo, que inclui também a companheira desse homem e mais uma jovem mulher. Ao mostrar como eles trazem a pequena Yuri para a família, o diretor Koreeda permite ao espectador deduzir a trajetória dos demais integrantes até formarem esse núcleo.
Laços fortes
Da mesma forma, entendemos como esse grupo de pessoas desenvolve um laço afetivo tão forte, que supera o de famílias constituídas pelo sangue e pela formalidade. A evolução desse amor é exemplificada com o garoto Shota que, a princípio, não aceita a nova integrante, mas com o tempo passa a considera-la sua irmã.
O filme deposita uma importância grande na verbalização do vínculo familiar. Por isso, Osamu, o homem, sente carência de ser chamado de pai por Shota. É uma necessidade de segurança que, na prática, nem deveria existir, porque o relacionamento entre os dois não deve nada ao que vivenciam a maioria dos pais e filhos. Aliás, duas cenas são emblemáticas para demonstrar isso. Quando os dois são filmados do alto, juntos em um pátio perto de onde moram, e, na praia, quando conversam sobre assuntos de “homem” enquanto brincam nas ondas.
A família, porém, é pobre e sobrevive de pequenos furtos, de baixos salários de serviços braçais. Além, também, da pensão da avó, da mesada que a avó recebe do filho de seu ex-marido e do trabalho de stripper de Aki, numa atividade similar ao ofício de Nastassja Kinski em Paris, Texas.
Questão de ética
Shota está amadurendo e o menino começa a questionar a ética dos pequenos furtos de Osamu. Isso acontece quando um velho dono de uma pequena loja dá um doce para ele e para a irmã, depois de flagrar o golpe aplicado pela menina, aconselhando-o a não deixar que ela repita esse ato novamente.
Esse sinal desperta a consciência moral de Shota, que começa a questionar a prática delituosa de Osamu e sua companheira Nobuyo. Então, quando percebe que ele e Yuri estão fadados a seguir os passos dos pais adotivos, Shota decide agir para mudar esse destino. Porém, isso provoca uma ruptura nessa harmonia, abrindo espaço para as convenções sociais determinarem o futuro deles.
Direção
Hirokazu Koreeda habilmente constrói cenas com enorme carga emocional, cenas que possuem autonomia, sem que essa independência prejudique a unicidade do filme. A obra é um todo, mas podemos facilmente segmenta-lo em episódios tocantes que são essenciais para a estória que está sendo contada.
Aliás, esses momentos são tão ternos que desejamos prolonga-los. Queremos nos divertir na praia com a turma toda, e nos sentirmos tão felizes quanto a avó que agradece à vida por ter colocado essas pessoas em seu caminho. Alguns são tocantes, como as lágrimas que Nobuyo não consegue conter ao saber o que aconteceu com Yuri. Descobrimos que a menina sofria a violência dos pais, e Nobuyo se identifica com ela, porque foi também vítima de agressões, por parte de seu ex-marido.
Por outro lado, o diretor Koreeda também quebra expectativas e não deixa a narrativa previsível. Além de deixar para o final as revelações sobre alguns segredos, evita situações que o cinema repete em demasiado. Por exemplo, a cena mais sensual do filme não acontece com a stripper Aki, e sim com o casal que há tempos não faz sexo. Em contraponto, Aki e um cliente protagonizam um momento de pura ternura.
E tudo funciona, porque todos os atores estão ótimos, compondo um ensemble cast, conjunto de elenco, magnífico. Os intérpretes interagem um com outro tão intensamente que convencem que realmente se amam, tal qual o roteiro pede. Ademais, aproveitando também os atos individuais para seu brilho solo.
Uma obra sentimental e crítica
Além disso, Assunto de Família equilibra o tom dramático com instantes de comédia, nas mãos do ator Lily Frank no papel de Osamu, e muita afetuosidade entre os personagens. Ao mesmo tempo, apresenta esse contraste desse lado bom com a dura vida que eles levam, sem conforto e com pouco dinheiro.
Como o americano Projeto Flórida (2017), Assunto de Família faz um recorte peculiar da classe social baixa em países de primeiro mundo. No filme de Koreeda, com uma pegada mais sentimental, apesar de a crítica estar também presente. Afinal, fica a mensagem que o que é aceito socialmente nem sempre é o que traz maior felicidade. Isso, num país onde o dever cívico possui prioridade sobre a vida pessoal, representa uma crítica contundente.
Ficha técnica:
Assunto de Família (Manbiki kazoku, 2018) Japão. 121 min. Dir/Rot: Hirokazu Koreeda. Elenco: Lily Franky, Sakura Andô, Mayu Matsuoka, Jyo Kairi, Miyu Sasaki, Sôsuke Ikematsu, Yûki Yamada, Moemi Katayama, Daisuke Kuroda, Kazuaki Shimizu.