Os temas dos filmes do diretor chileno Sebastián Lelio se entrelaçam, mas não se repetem. Seu longa Gloria (2013) trata de uma personagem que, por ter 58 anos, é limada pela sociedade do direito a um novo amor. Similar restrição enfrenta a protagonista de Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantástica, 2017), mas o motivo é sua transgeneridade. Essa questão de gênero assume a forma do lesbianismo em Desobediência (Disobedience, 2017), agravada pelo rigor das regras religiosas. Agora, em seu mais recente filme, O Milagre (The Wonder), que estreia hoje na Netflix, o fanatismo religioso se encontra no centro da trama.
Lelio assume uma posição ousada logo na abertura de O Milagre. Enquanto ouvimos a narração que declara a veracidade dos fatos que o filme relatará, vemos a câmera realizar uma panorâmica dentro de um estúdio, revelando o set de filmagem até entrar no cenário do filme, e dali iniciar o enredo. Essa metalinguagem mais que explícita poderia ser um exercício de maneirismo gratuito, que ainda se repete na conclusão, e também no meio do filme, quando descobrimos quem é a narradora quando a personagem olha direto para a câmera. Mas o recurso não impede que entremos na história, que facilmente nos absorve. E, mais importante, ele se justifica quando refletimos sobre o filme após assistí-lo. Afinal, essa quebra da fantasia do cinema nada mais é do que uma metáfora da desmistificação do milagre que se encontra no cerne da trama.
Comer para viver
O milagre, na história, é o fato de uma menina se manter viva mesmo sem comer nada há quatro meses. O fato acontece na Irlanda, em 1862, e a enfermeira Lib Wright (Florence Pugh) aceita a função de vigiá-la. A família extremamente religiosa da menina, Anna (Kíla Lord Cassidy), defende que o fenômeno se trata da vontade divina. Como Lib divide o turno da vigia com uma freira, e o médico local procura alguma explicação pseudocientífica, cabe à enfermeira descobrir a verdade por trás dessa situação.
Ao longo do filme, temos indícios de que Lib possui uma motivação pessoal para se envolver tanto nessa missão. Por algum motivo, todas as noites, ela bebe um tipo de xarope, fura seu dedo e desmaia após ingerir a gota de seu sangue. Seu segredo se revela na parte final, e legitima o quanto ela valoriza a vida – no caso atual, de Anna, que poderá morrer. Essa valorização fica evidente, também, nas recorrentes cenas em que vemos Lib comendo, em contraste com a menina que jejua e está definhando.
A fotografia e a conclusão
Antes de comentarmos sobre a nossa crítica à conclusão de O Milagre, precisamos enaltecer o trabalho da fotografia. O fato de ser um filme de época, que se passa no campo, em um ambiente onde a religiosidade é forte, remete a A Bruxa (The Witch, 2015), no qual o diretor de fotografia Jarin Blaschke tentou criar imagens que se assemelhavam a pinturas religiosas. Da mesma forma, a diretora de fotografia de O Milagre, Ari Wegner, consegue o mesmo efeito, em especial nas cenas dentro do escuro quarto de Anna.
Por fim, talvez a parte final enfraqueça O Milagre, ao revelar o destino dos principais personagens. Seria dramaticamente mais contundente deixar em aberto se a menina teria sobrevivido a essa experiência. Porém, Sebastián Lelio prefere se manter fiel à sua proposta, pois o final aberto daria margens ao misticismo que ele quer combater.
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Ficha técnica:
O Milagre | The Wonder | 2022 | 108 min | Irlanda, Reino Unido, EUA | Direção: Sebastián Lelio | Roteiro: Sebastián Lelio, Alice Birch | Elenco: Florence Pugh, Tom Burke, Kíla Lord Cassidy, Niamh Algar, David Wilmot, Ruth Bradley, Toby Jones, Dermot Crowley, Ciarán Hinds, Brian F. O’Byrne, Josie Walker, Elaine Cassidy.
Distribuição: Netflix.