Eduardo Kaneco, editor deste site, incumbiu-me de escrever sobre este filme de 3 horas dirigido por Ari Aster. Por esse motivo, deixei de lado o “querido” que poderia colocar antes de “editor”. Brincadeiras à parte, devo, de fato, agradecê-lo, pois minha curiosidade para ver Beau Tem Medo (Beau is Afraid) ia até um ponto quase irrisório na minha escala de desejos, já que não gosto de Hereditário (2018), nem de Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (2019).
Escrevi tempos atrás que de vez em quando minha porção masoquista se manifesta, o que me leva a querer ver filmes dos quais tenho quase certeza de que não irei gostar. Por vezes, sou surpreendido (o caso de Caché, 2005, de Michael Haneke, ainda reverbera em minha memória), mas são exceções. Em 80% das vezes o filme se revela mesmo uma bomba, como eu havia previsto (vários casos recentes, os mais notórios sendo Triângulo da Tristeza e Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo ambos de 2022).
Isto nos traz de volta a Beau Tem Medo, que ainda por cima é uma produção da A24, produtora e distribuidora que se esmera em um tipo de modernidade de boutique, afetação no choque, nos filmes que ela mesma produz, contrabalançada por algumas escolhas boas entre os filmes que distribui, o que dá uma impressão geral de que ela é melhor do que realmente é.
Devo dizer que este terceiro longa de Ari Aster tem, ao menos em sua primeira hora, o valor inegável de traduzir o que é viver numa cidade grande hoje, quando as pessoas, mesmo as mais lúcidas, parecem ter enlouquecido com a pressa do dia a dia, a perda do poder de compra, as puxadas de tapete em todas as esferas profissionais, a ausência de silêncio, a incapacidade que a maioria das pessoas tem de pensar no próximo, e um grande et cetera.
Contribui para isso a interpretação de Joaquin Phoenix, milhas acima de seus últimos trabalhos após Era Uma Vez em Nova York (2013), no qual ele está excelente (mas parecia que só estava magnífico nos filmes de James Gray). Se em Coringa (2019), para ficarmos num exemplo recente, seu overacting chega a constranger, e foi incrivelmente interpretado por muitos críticos como uma grande atuação, aqui ele está, até certo ponto da trama (chegaremos lá), incrivelmente preciso, o que não deixa de ser um mérito de quem o dirigiu, ou seja, de Ari Aster.
Phoenix interpreta Beau, solitário morador de uma grande cidade, que tenta visitar sua mãe distante quando tem a chave do apartamento roubada, junto com sua mala de viagem. Logo depois, ao sair para buscar água, ele tem o apartamento invadido por um monte de mendigos e malucos de rua. Quando volta, tenta ligar para a mãe, mas descobre que ela foi esmagada por um grande lustre que despencou do teto. Beau precisa viajar para cuidar do enterro de sua mãe.
Claro que em se tratando desse diretor, trabalhando com uma duração dessas, teremos uma série de ideias e personagens que aparecem e desaparecem, nem sempre contribuindo para o bem do filme. Teremos também o pedágio do cinema contemporâneo: ou seja, em algum momento o protagonista vai vomitar.
Coisas malucas acontecem no filme inteiro. No miolo, uma representação dentro da representação coloca o filme em trilhos mais perigosos. A partir daí, o filme vira uma Alice invertida em que as ideias se tornam menos malucas do que infames, incluindo uma transa de morte que Gaspar Noé aprovaria (o que obviamente não é bom).
Curioso como um diretor com pretensões autorais desenvolve razoavelmente bem o drama até certo ponto, para depois se perder numa espécie de estrada sem retorno por um tipo de cinema da crueldade em que as relações pessoais são feitas de humilhações e manipulações. Como se não bastasse, o nível da mise en scène decai sensivelmente na segunda metade, até um desfecho francamente ridículo, como habitual no cinema de Ari Aster.
Muitas ideias provocam irregularidade. Às vezes estamos no terreno de David Lynch, outras no de Lars Von Trier (momentos que lembram A Casa que Jack Construiu, de 2018). No todo, é como se o Roman Polanski mais delirante, o de Que? (1973), despedisse o montador e resolvesse deixar todas as ideias, mesmo as piores, em sua nova loucura fílmica.
Em algum momento, alguma instância crítica, externa ou mesmo interna, deve dizer que a coisa foi longe demais. Isto não acontece com o tipo de diretor que é Ari Aster. Poderia ser bom esse salto no abismo. Neste caso é um tremendo desperdício de um bom ponto de partida.
Texto escrito pelo crítico e professor de cinema Sérgio Alpendre, exclusivamente para o Leitura Fílmica.
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Ficha técnica:
Beau Tem Medo | Beau Is Afraid | 2023 | 179 min | Canadá, Finlândia, EUA | Direção e roteiro: Ari Aster | Elenco: Joaquin Phoenix, Patti LuPone, Amy Ryan, Nathan Lane, Kylie Rogers, Denis Ménochet, Parker Posey, Zoe Lister-Jones, Armen Nahapetian, Julia Antonelli, Richard Kind.
Distribuição: Diamond Filmes / Galeria Filmes.
Trailer aqui.